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Comunicação Não Violenta: Um guia completo para praticar e entender a CNV

A Comunicação Não Violenta (CNV) não é uma técnica de falar "bonito" ou evitar conflitos com diálogos superficiais. Desenvolvida por Marshall Rosenberg a partir dos anos 1960, a CNV é um processo dinâmico e artesanal que transforma nossa interação diária e nossa cultura de convivência, mudando de uma cultura focada em dominação e controle para uma cultura focada em cooperação e parceria. Este guia completo desdobra os princípios, práticas e os impactos profundos da CNV em nossas vidas.



1. O que é Comunicação Não Violenta?


A Comunicação Não Violenta (CNV) é um processo desenvolvido por Marshall Rosenberg que integra linguagem, habilidades de pensamento e comunicação, e formas de lidar com o poder. Diferente das ações motivadas por dever, obrigação ou medo, a CNV promove ações baseadas no desejo genuíno de contribuir para o bem-estar do outro. Uma das premissas da CNV é que a natureza humana inclui o desejo de ajudar os outros, mas muitas vezes essa inclinação é reprimida por uma educação baseada em dominação e julgamentos moralistas.


A CNV nos incentiva a reformular a maneira como nos expressamos e escutamos, permitindo-nos comunicar com honestidade e nitidez, enquanto oferecemos uma atenção respeitosa e empática aos outros. Além de ser um processo de comunicação, a CNV é também uma filosofia de vida que envolve um modo de ser, pensar e viver.


2. Marshall Rosenberg e a Origem da CNV


Marshall Rosenberg nasceu em 6 de outubro de 1934, nos Estados Unidos, em uma família de judeus não praticantes com poucos recursos financeiros. Crescendo durante um período de intensas tensões sociais e raciais, Rosenberg foi exposto desde cedo aos impactos diretos do preconceito e da agressividade humana. Essas experiências moldaram seu interesse em buscar soluções que promovessem paz e entendimento entre as pessoas.


Após concluir o ensino médio, Rosenberg prosseguiu seus estudos em Psicologia, movido por uma curiosidade sobre a natureza da compaixão humana e as dinâmicas da comunicação interpessoal. Ele estudou na Universidade de Michigan e na Universidade de Wisconsin-Madison, onde defendeu sua dissertação de mestrado em 1958. Durante seu doutorado, foi profundamente influenciado por Michael Hakeem e Carl Rogers, este último um pioneiro da abordagem centrada na pessoa, que enfatiza a importância da empatia e do entendimento genuíno nas relações terapêuticas.


Rosenberg desenvolveu o processo da CNV como uma prática para abordar conflitos e promover a paz, tanto em níveis pessoais quanto comunitários. A CNV se tornou não apenas uma prática de resolução de conflitos, mas um movimento global dedicado à transformação das interações humanas, substituindo reações automáticas de julgamento e defesa por respostas de empatia e cooperação.


3. Por que não violência?


A definição de "não violência" pode ser ambígua, incluindo desde a ação direta não violenta até o amor por toda a humanidade e a ausência de violência. Embora o termo "Comunicação Não Violenta" tenha sido adotado, Rosenberg não gostava dele porque enfatizava o que algo não é, em vez de focar no que queremos. No vídeo abaixo ele explica isso (vídeo em inglês):



4. Princípios Fundamentais da CNV


O processo da CNV é conhecido por quatro componentes principais, embora existam outros componentes e distinções-chaves registrados e em constante pesquisa. Os componentes principais são: observação, sentimento, necessidade e pedido.


Observação


No coração da CNV está a capacidade de diferenciar observações de avaliações. Observações são descrições factuais de situações, desprovidas de carregamentos emocionais ou julgamentos. Por exemplo, ao invés de dizer "Você nunca me escuta" (uma avaliação carregada de julgamento e crítica), a CNV sugere expressar algo como "Notei que nos últimos três encontros você interrompeu enquanto eu estava falando". Este princípio ajuda a evitar que a outra pessoa se sinta atacada e, assim, mais propensa a se defender ou se fechar para o diálogo.


Sentimento


Rosenberg ensinava que expressar nitidamente os sentimentos é fundamental para uma comunicação eficaz. A CNV distingue sentimentos de pensamentos, o que ajuda a evitar comunicações que possam ser interpretadas como acusações. Por exemplo, substituir "Eu sinto que você não se importa comigo" (um pensamento disfarçado de sentimento) por "Eu me sinto triste quando você cancela nossos planos" indica que a emoção de tristeza está ligada a ações específicas, não a suposições sobre intenções ou caráter.


Necessidade


Outro pilar da CNV é a identificação de necessidades universais humanas, como segurança, pertencimento, amor, respeito, e autonomia, que estão por trás de cada sentimento. A CNV ensina que estratégias são os métodos que escolhemos para atender essas necessidades. Reconhecer essa distinção permite que as pessoas explorem novas estratégias para satisfazer suas necessidades, sem ficarem presas em padrões de comportamento que não servem mais a seus objetivos ou relacionamentos. Inspirado por Abraham Maslow e Manfred Max-Neef, Rosenberg enfatiza que todas as necessidades humanas são universais, apesar das diferentes estratégias para atendê-las


Pedido


O quarto componente é fazer pedidos nítidos, específicos e em linguagem positiva para atender às necessidades identificadas. Diferenciar pedidos de exigências é crucial, pois um pedido verdadeiro é flexível e aberto a um "não," respeitando a autonomia da outra pessoa. Isso contrasta com exigências, que não deixam espaço para escolha e podem levar a ressentimento ou resistência. Por exemplo, "Você poderia me ajudar a preparar o jantar?" é um pedido que deixa espaço para a negativa, enquanto "Você deve me ajudar com o jantar" é uma exigência que pressupõe obrigatoriedade.


Esses princípios não apenas enriquecem as interações pessoais mas também se aplicam em contextos mais amplos, como negociações de paz, educação, gestão de conflitos corporativos, e terapia, demonstrando a versatilidade e profundidade da CNV como uma ferramenta para a promoção da compreensão e da paz.



5. Exercícios Práticos de CNV para experimentar agora


Transformando a dor de necessidades não atendidas


Pegue um caderno ou um bloco de notas digital e siga o passo a passo abaixo:


1. Escolha uma situação que gostaria de analisar


2. O que aconteceu ou foi falado antes de você reagir? Seja específico e concreto, descrevendo o estímulo preciso que gerou seus sentimentos. Lembre-se de diferenciar observação de avaliação.


3. Escreva abaixo exatamente quais pensamentos você teve na situação.


4. Agora olhe para esses pensamentos, reconheça que eles são seus e divirta-se com você mesmo(a), independente dos julgamentos que tem sobre si. Se vier raiva, angústia, julgamentos morais, deixe tudo vir e encontre maneiras de expressar. Pode expressar em silêncio, falando em voz alta ou escrevendo.


Dica: experimente repetir os pensamentos acima da seguinte forma: Eu estou dizendo pra mim mesmo que [pensamento].


5. Quais as sensações que você teve no seu corpo?


6. Quais sentimentos estavam presentes? (Você pode usar esta lista de sentimentos para lhe apoiar)


7. Quais eram as necessidades atendidas ou não atendidas sendo apontadas por esses sentimentos? (Você pode usar esta lista de necessidades para lhe apoiar)


8. Perceba seus sentimentos e necessidades e permita-se estar com eles. Permaneça no luto até sentir algo próximo de alívio ou relaxamento.


9. Agora reescreva as necessidades dentro do coração e conecte-se com elas. Não foque tanto no fato delas não terem sido atendidas, e sim na necessidade em si. Perceba com consciência como essa necessidade é algo importante para você e para toda a humanidade.


10. Quais ações internas ou externas você gostaria de fazer ou pedir para atender essas necessidades?


6. Os âmbitos de impacto da CNV


Existem pelo menos três âmbitos em que podemos pensar a prática da CNV.


Intrapessoal


No âmbito intrapessoal, a CNV ajuda a romper condicionamentos culturais, curar feridas emocionais e transformar julgamentos em compreensão das necessidades não atendidas. Também promove a mudança de emoções como raiva, culpa, vergonha e medo em sentimentos que favorecem a paz interior e a liberdade.


Interpessoal


Interpersonalmente, a prática da CNV cultiva empatia, honestidade, reciprocidade e cuidado, aumentando a confiança, compreensão e cooperação nos relacionamentos.


Sistêmico


Sistemicamente, a CNV promove a justiça social através dos princípios de empatia e comunicação honesta nas interações cotidianas e nas estruturas sociais.


7. Conclusão


Praticar a CNV não é sobre adotar uma nova persona ou mascarar intenções com palavras suaves. É sobre cultivar uma qualidade de conexão que favorece a compreensão mútua e a cooperação. Através de uma prática contínua e consciente, podemos transformar nossas interações e contribuir para uma sociedade mais empática e conectada.


Este guia procurou cobrir os aspectos essenciais da CNV, convidando cada leitor a explorar essas práticas em sua própria vida. Que sua jornada com a CNV seja tão enriquecedora e transformadora quanto a de milhares de pessoas ao redor do mundo que encontraram na CNV um caminho para uma comunicação mais autêntica e compassiva. Ao praticar a CNV, podemos transformar nossos relacionamentos pessoais e profissionais, contribuindo para um mundo mais justo e harmonioso.


Referências


  • COLLIER, Kristin K.; MATTEI, Stephanie Bachmann. The Heart of Nonviolent Communication: 25 Keys to Shift From Separation to Connection. Encinitas: PuddleDancer Press, 2023.

  • RIBEIRO, Listhiane Pereira; SEIBT, Cezar Luis. Para além do certo e errado, do bem e do mal: conhecendo melhor Marshall Bertram Rosenberg e seu processo de construção da comunicação não violenta. Revista Signos, v. 42, n. 1, 2021.

  • ROSENBERG, M. A linguagem da paz em um mundo de conflitos: sua próxima fala mudará  seu mundo. São Paulo: Palas Athena, 2019a.

  • ROSENBERG, M. Comunicação Não Violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. São Paulo: Ágora, 2006.

  • ROSENBERG, M. Educação para uma vida mais plena: comunicação não violenta - ajudando escolas a melhorar o desempenho acadêmico dos alunos, reduzir conflitos e fortalecer bons relacionamentos. 1. ed. São Paulo: Palas Athena, 2021.

  • ROSENBERG, M. Vivendo a Comunicação Não Violenta. Rio de Janeiro: Sextante, 2019b.

  • SHARP, Gene. Sharp's Dictionary of Power and Struggle: Language of Civil Resistance in Conflicts. Oxford: Oxford University Press, 2011.

  • WALDEN, M. THE PURPOSE OF NVC. Disponível em: <https://www.cnvc.org/about/cnvc/purpose-of-nvc>. Acesso em: 02 out. 2023.

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